O que a Mongólia pode nos ensinar sobre carros elétricos?

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Trânsito em Ulaanbaatar: 13% dos carros do país são elétricos, mas boa parte da cidade não tem energia

 

Tudo começou na Dinamarca: até 2040, nenhum carro rodando pelas ruas e estradas dinamarquesas poderá ter motor a combustão. Todos terão de ser elétricos.

A ideia se alastrou pelo mundo: França, Reino Unido e China decidiram fazer o mesmo e outros países foram ainda mais agressivos em suas metas, como a Holanda, que estipulou sua meta para 2025, ou alguns estados da Alemanha e toda a Índia, que definiram 2030 como prazo final.

Como era de se esperar, os fabricantes de veículos se juntaram ao frenesi antipoluição. A Volvo anunciou que não fabricará mais veículos com motores a combustão a partir de 2019. A GM anunciou que lançará dezenove modelos de veículos elétricos até 2020.

Enquanto isso, a Tesla avança para fabricar 500 mil carros elétricos até 2018 — o que, segundo a empresa, exigiria toda a produção global de baterias de íon-lítio só para seus carros. Como resolver esse problema? Construindo a maior fábrica de baterias do mundo, a Gigafactory, com capacidade para produzir o total de 35 gigawatts-horas em baterias. Isso seria o equivalente a duplicar a produção global de baterias. Quando concluída, estima-se que a Gigafactory será a maior construção do mundo.

A nova realidade é reconhecida até mesmo pelos maiores produtores de petróleo, como demonstra o novo plano econômico da Arábia Saudita. Até 2030, as autoridades sauditas pretendem diminuir a participação da receita com o petróleo para 35% do orçamento total do país, e inclui até mesmo a venda de parte da estatal Aramco, a maior empresa petrolífera do mundo.

Tudo muito bom, tudo muito bem, mas realmente… quais serão as implicações desta mudança? É difícil responder esta pergunta em se tratando de uma nova tecnologia, como é o caso de veículos elétricos. Apesar de toda empolgação com o assunto, ao final de 2016 havia pouco mais de 2 milhões de veículos realmente elétricos rodando pelo mundo — uma molécula de ar puro na fumaça de 1,2 bilhão de carros que havia no planeta em 2014.

Porém, como sempre acontece nestes casos, é em locais impensáveis que podemos ter uma ideia aproximada do impacto de uma novidade sobre o mundo. No caso dos carros elétricos, esse local é a Mongólia.

Talvez não haja outro país no mundo em que a penetração de carros elétricos, ou híbridos, tenha se dado mais profundamente do que na terra de Genghis Khan. Estimativas oficiais apontam que em 2012, havia 228.592 veículos licenciados no país, e que este número crescia a uma taxa de 150 a 300 veículos por dia. Uma conta de padaria nos mostra, portanto, ser bastante provável, considerando os 1044 dias úteis dos anos de 2013 a 2016, que este número esteja por volta de 385 mil veículos licenciados, ao final do ano passado.

E, desse total, 13% de todos os carros eram Toyota Prius, sendo que em 2015, mongóis tinham importado 19.494 destes veículos, ou 52,5% de todos os carros importados pelo país. Todos usados: segundo a Toyota, apenas 10 Prius novos foram vendidos no país no mesmo ano.

Andando pelas ruas de Ulaanbaatar, a capital do país, é fácil ver como o Prius é a grande febre mongol. Nos congestionamentos, comuns em toda a cidade, dá para contar o número destes carros híbridos, e o total sempre ultrapassa vinte. Cheguei até mesmo a ver um Tesla em Ulaanbaatar. Enquanto estive na cidade, fui ciceroneado por Muuji, um nativo quase nos quarenta anos, que me conduz por toda a cidade em seu Prius.

“É muito mais barato ter um Prius”, ele começa a me explicar durante um congestionamento interminável. “Aqui, há dois impostos: um sobre a importação do carro e outro sobre a potência do motor, sendo que quanto mais potente, maior será o imposto. Porém, carros híbridos não pagam imposto sobre o motor, e isso barateia muito o preço final”. Ou seja: na Mongólia, Toyota Prius é carro de pobre.

Imposto parece ser a palavra chave para o sucesso dos carros elétricos. Na Dinamarca, a carga tributária sempre foi menor para veículos não poluentes, o que posicionou o país na liderança da adoção de carros elétricos. Porém, a política tributária foi gradualmente reajustada a partir de 2015 e em 2016, com o segundo ano consecutivo de aumento nos impostos, a venda de carros elétricos na Dinamarca caiu 60%.

Muuji continua a elencar as vantagens do carro elétrico para o consumidor mongol — e seu próximo tema é o preço dos combustíveis. A Mongólia é um país com reservas de petróleo suficientes para o consumo interno, porém sem capacidade de refino, de forma que o preço dos combustíveis sempre foi alto. Na época do comunismo, porém, havia subsídios do governo, que foram retirados quando o regime caiu. Agora, diz Muuji, empresas chinesas detêm o controle destas reservas e os preços internos sobem conforme a cotação internacional.

“O combustível na Mongólia é um dos mais caros do mundo”, ele afirma — e uma rápida passada por um posto de combustível comprova sua afirmação: o litro do diesel sai por quase 1 dólar. Esse é um custo que cai para mais da metade em um carro híbrido.

Da janela do carro de Muuji vejo um ônibus começar a andar, soltando uma nuvem negra e densa de diesel no ar. O insight vem até dolorido de tão óbvio: por que não há ônibus elétricos? Porque havia ônibus elétricos — em São Paulo, os trólebus riscavam a cidade de ponta a ponta até os anos 90. Lentamente, porém, eles foram removidos de circulação e agora, pelo menos na capital paulista, há ônibus a diesel e alguns modelos rodando com combustíveis renováveis.

A questão dos ônibus elétricos é importante: nem todas as cidades têm recursos para construir redes de metrô ou de VLT. Além do mais, a própria estrutura de custos do transporte urbano incentiva a utilização do diesel, porque a tarifa tem de ser a mais baixa possível, forçando os custos a serem mais baixos ainda. E não há outro combustível mais barato que diesel, que também é um dos mais poluentes.

Adicione-se a isso o fato de que em cidades como Ulaanbaatar os ônibus geralmente são muito velhos… e o que se tem é uma desgraça ambiental em grandes proporções. Mas isso não é restrito apenas à Mongólia: boa parte do compromisso europeu em proibir veículos à combustão até 2040 decorre do fato de que a frota de automóveis a diesel do continente é enorme.

Um estudo divulgado em janeiro deste ano do International Council on Clean Transportation (Conselho Internacional sobre Transportes Limpos) revelou que um automóvel recém-saído de fábrica, a diesel, emite tanto óxido de nitrogênio quanto ônibus e caminhões de grande porte. No Reino Unido, estima-se que mais de 23 mil pessoas morram por contaminação com óxido de nitrogênio por ano.

Apesar do alto número de Prius tentando andar pelas suas ruas, a poluição ainda é um dos grandes problemas de Ulaanbaatar. A situação piora no inverno, quando os bairros pobres que ficam nos morros que circundam a cidade têm de queimar lenha para se aquecer. Muuji me conta que, no inverno, a fumaça que recobre a cidade chega a ficar tão densa a ponto de encobrir as montanhas, visíveis de qualquer ponto da capital. Esta é a grande contradição da capital da Mongólia: enquanto a classe média tem energia elétrica para abastecer seus carros, a grande população pobre não tem eletricidade para sobreviver na capital mais fria do mundo.

Pergunto à Muuji se há energia elétrica disponível para as casas e os carros na Mongólia. Ele ri, e sua resposta descreve a grande contradição da tecnologia de carros elétricos.

“Não há muitas cidades na Mongólia — somos apenas três milhões de pessoas, com a menor densidade populacional do mundo. A maioria das pessoas vive em Ulaanbaatar, mas a cidade começou a receber um número maior de migrantes nos últimos anos e, para dar conta, o governo resolveu investir em usinas elétricas alimentadas a carvão”. Segundo dados do governo, 80% de toda a energia gerada no país é proveniente do tipo de geração de energia mais poluente do mundo.

Este é o problema: à medida que o número de veículos elétricos aumenta, também aumenta a necessidade de investimentos em geração e transmissão de energia. Atualmente, não há outro meio de fazer estas duas coisas sem grandes prejuízos à natureza — seja por carvão ou por hidrelétricas. É de se esperar que, em algum momento, as tecnologias de geração de energia eólica ou solar ganhem escala suficiente para substituir as atuais usinas elétricas, mas nem mesmo o maior entusiasta destas energias renováveis saberia dizer quando isso poderia ocorrer.

De forma que hoje, quem espera contribuir com o meio ambiente ao dirigir um carro elétrico deve estar consciente de que grande parte dos seus ganhos apenas compensa a geração da energia que abastece seu carro.

Há outro problema: haverá energia elétrica para todo mundo? Quando o Reino Unido anunciou seu plano de banir veículos a combustão até 2040, as concessionárias de energia alertaram que a demanda por eletricidade poderá subir em até 30 gigawatts ao atual pico de 61 gigawatts diário.

Para atender a nova demanda de 91 gigawatts, seriam necessários instalar em toda a Grã-Bretanha mais 10 mil turbinas eólicas, ao custo de 3 milhões de libras por turbina — e cada turbina leva 6 meses para ser construída. Ou então construir dez usinas nucleares, ao custo de 20 bilhões de libras por usina, sendo que cada usina necessita de 20 anos para construir, testar e entrar em operação. Vale lembrar que a gigantesca fábrica de baterias que a Tesla está construindo vai gerar 35 gigawatts-hora.

Já em Terra Brasilis, não há como calcular o impacto dos carros elétricos sobre o sistema energético do Brasil por um simples motivo: nós fomos por outro caminho.

O Brasil é o pioneiro mundial na adoção em massa de combustível renovável, com a extração do álcool da cana de açúcar, o etanol. No entanto, o sistema é frágil. Conforme a demanda, pode ser mais vantajoso produzir açúcar do que etanol. Neste caso, entra em prática uma equação descoberta pela sabedoria popular: se o preço do etanol for mais de 70% do preço do litro da gasolina, é mais econômico usar o derivado de petróleo por causa de sua combustão mais poderosa.

Uma pesquisa conduzida pelo Instituto de Física da USP, entre janeiro e maio de 2011, e divulgada em agosto de 2017, capturou os efeitos desta relação de troca sobre o meio ambiente. Segundo a pesquisa, quando a gasolina fica mais vantajosa que o etanol, há um aumento de 30% na emissão de micropoluentes à atmosfera.

E isso porque não estamos falando de ônibus: segundo o Instituto Saúde e Sustentabilidade, também divulgada em 2017, mais de 3 mil pessoas por ano falecem devido a complicações causadas pela fumaça dos ônibus à diesel. Paulo Saldiva, chefe do Laboratório de Poluição Atmosférica da Faculdade de Medicina da USP, compara: “Duas horas no trânsito da capital equivale a fumar um cigarro por dia”.

É a mesma coisa na Mongólia e nos demais países do mundo, com uma diferença: estamos economicamente amarrados ao etanol. Não temos como construir um sistema de geração de energia renovável, porque isso exigiria tempo e recursos fora de nossa realidade econômica. Simplesmente não temos como fornecer a eletricidade exigida pelos veículos elétricos sem construir mais hidrelétricas que causariam os estragos ambientais que vimos com Belo Monte ou Jirau.

Daí a atual carga tributária sobre veículos híbridos ou elétricos: além do imposto de importação, que pode variar até 7% conforme a eficiência energética, ainda há 13% de PIS/Cofins, ICMS (de 12% a 18%, conforme o estado) e IPI, que pode chegar a até 55%. Some-se a isso o IPVA

Com isso, a relação de preços entre elétricos e convencionais é absurda. O modelo mais básico do Prius é vendido no Brasil por R$ 120 mil. Com este dinheiro, é possível comprar um Audi A3, um Mercedes-Benz C180 Coupé ou ainda uma BMW 320i Sport e poluir ainda mais a cidade com seu status. Segundo a Anfavea, desde 2006 apenas 2,5 mil carros “verdes” foram emplacados no país. A entidade calcula que há no Brasil 50 milhões de automóveis. A conclusão é triste: é uma política de Estado não incentivar a adoção de carros elétricos no país.

Vou embora da Mongólia me sentindo derrotado pela velha economia industrial. Você não pode comparar um Ford T com o último modelo da Porsche sem se dar conta de que a essência de ambos é a mesma: o velho motor à combustão. E, no entanto, mesmo a revolução trazida pelo motor elétrico está condicionada às limitações impostas pelo modelo de desenvolvimento adotado no século 20.

De forma que atender a crescente demanda por carros elétricos requer grandes investimentos em energia limpa — o que poucos países estão preparados no mundo para fazer. E aí, o mundo tem duas opções.

A primeira é construir a energia possível, a grande custo ecológico: hidrelétricas, por exemplo. Ou negligenciar uma grande parte da população para fornecer a energia para carros elétricos, como em Ulaanbaatar.

De um jeito ou de outro, a Mongólia nos ensina que a revolução dos carros elétricos é apenas o primeiro quilômetro na rodovia que leva a um mundo mais limpo.

 

Texto originalmente publicado na revista TRENDR, em outubro de 2017

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